Foto mostra mulher pagando conta em mercadinho

O salário que Maria não vê: quase 20% vai embora em impostos

A auxiliar de cozinha moradora de Santa Isabel (SP) ganha pouco mais de um salário mínimo e vê mais de R$ 300 do seu salário desaparecer em impostos embutidos em contas básicas como luz, gás, internet, mercado e IPTU

Por Amanda Stabile

23|09|2025

Alterado em 23|09|2025

Desde 2015, Maria*, de 49 anos, trabalha como auxiliar de cozinha em uma empresa de Santa Isabel, na Grande São Paulo. No fim de cada mês, o ritual é sempre o mesmo: juntar boletos, notas fiscais e o holerite para equilibrar as contas da casa. O que ela não percebe é que, antes mesmo de gastar com comida, luz ou gás, uma parte considerável do salário já vai embora em impostos.

Nunca parei para pensar nisso. Senão eu desanimo de vez…

No papel, Maria tem um salário bruto de R$ 1.934,00. Metade disso, R$ 773,60, vem como adiantamento no meio do mês. O restante, R$ 925,00, cai no fim do mês — já com os descontos. No fim, o que realmente entra na conta é R$ 1.698,60. Mas até chegar nesse valor, há uma série de abatimentos. Na prática, Maria vê quase R$ 240 sumirem do salário registrado em carteira.

“Eu sei que impostos são porcentagens cobradas em cima de cada produto que a gente compra, né? Até no mercado, hoje em dia, eles são obrigados a detalhar na notinha quanto é imposto. E quando você precisa ficar afastado mais de 14 dias, tem que dar entrada no INSS para receber sem trabalhar”, comenta.

“Graças a Deus, nunca precisei depender do INSS. Teve uma vez que me queimei no serviço, o médico falou que eu não tinha condições de voltar, mas eu praticamente implorei para ele me liberar. Só para não depender do INSS, porque todo mundo sabe que é uma porcaria”.

Impostos que aparecem em todo canto

Com menos de R$ 1.700 mil no bolso, Maria precisa organizar o básico: mercado, gás, luz, internet e uma parte do IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana) do terreno onde vive com a família. Cada boleto vem com um pedacinho do Estado embutido.

No mercado, Maria costuma gastar em torno de R$ 400,00 por mês para garantir o básico da alimentação da família que a cesta básica do serviço não cobre. Desse valor, R$ 56,56 correspondem ao ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Nas notas do mercado, por exemplo, esse valor aparece como “valor aproximado tributo federal 14,14%. Fonte IBPT”.

O botijão de gás, indispensável para cozinhar, custa cerca de R$ 120,00. Deste valor, R$ 18,07 correspondem ao ICMS. Mesmo com a redução do valor do imposto por quilo no começo de 2025 — que caiu de R$ 1,41 para R$ 1,39, segundo o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) — o imposto ainda representa uma parte importante do custo.

A internet, serviço essencial para estudos, lazer e informação da família, custa R$ 150,00 por mês. Desse valor, cerca de R$ 27,00 correspondem ao ICMS (18%). Além disso, R$ 5,48 são do Programa de Integração Social (PIS) e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) (3,65%), contribuições federais que também incidem sobre o serviço. No total, mais de R$ 32 do que Maria paga todo mês não vai para o provedor, mas para o governo.

A conta de luz de Maria chega a R$ 266,66 por mês. Cerca de 18,14% desse valor, ou R$ 48,37, correspondem a impostos, segundo a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), com base em dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O restante da conta é dividido entre outros custos: 30,41% vão para a própria energia consumida, 26,12% para a distribuição, 10,1% para transmissão e 15,23% para encargos diversos do setor elétrico.

Por fim, o IPTU é cobrado sobre o terreno onde Maria e a família vivem. A cobrança anual do imposto é de R$ 1.200,00, e a conta é dividida por cinco pessoas. A parte paga por ela corresponde a R$ 20,00 por mês.

Somando tudo, Maria paga R$ 326,73 em impostos por mês — o equivalente a mais de 19% de todo o salário líquido que recebe. É como se, antes mesmo de começar a viver, ela já estivesse pagando por isso.

Se eu tivesse esse dinheiro a mais todo mês eu guardaria, investiria… faria algo que me trouxesse algum benefício. Porque pagar imposto não traz retorno nenhum. Quando a gente precisa, não recebe. É só humilhação.

“No INSS a gente já é humilhado. E na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] nem se fala. Eu só vou se estiver desmaiada e alguém me levar. É muito descaso. Você chega mal e sai pior ainda. A gente não vai lá para passear, vai porque está mal. E mesmo assim eles tratam como se não fosse nada”, lamenta.

Pessoas pobres pagam proporcionalmente mais impostos no Brasil

A história de Maria não é exceção. O levantamento “Arqueologia da Regressividade Tributária no Brasil” da Oxfam Brasil mostra que os mais pobres no país chegam a pagar, proporcionalmente, três vezes mais impostos do que os super-ricos (0,1% mais ricos da população). Isso acontece porque, ao contrário de países ricos que cobram mais de quem tem renda e patrimônio altos, no Brasil a maior parte dos tributos está embutida no consumo — justamente onde famílias como a dela gastam quase tudo o que recebem.

O peso também tem cor e gênero: mulheres negras são as que mais sentem o impacto, já que lideram a maioria dos lares mais pobres. Isso significa que cada conta de luz, cada botijão de gás ou cada compra no mercado não pesa só pelo preço em si, mas pelo sistema tributário desigual que faz com que quem tem menos acabe pagando mais.

Na prática, funciona da seguinte forma: enquanto Maria, auxiliar de cozinha que recebe R$ 1.934 por mês, vê quase 20% da renda desaparecer em impostos embutidos nas contas básicas (cerca de R$ 327 mensais), os super-ricos acabam pagando menos de 10% de sua renda em impostos, proporcionalmente, graças a isenções e brechas legais, segundo estudo da Oxfam.

*Nome fictício para preservar as informações pessoais da entrevistada.